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A palavra de um ex-presidiário não vale nada

Adrienne Pedrosa e Glauciene Oliveira

Kênia Gabriela, a "colecionadora de lágrimas"

O retrato de Kênia Gabriela Mariano. (Foto: Adrienne Pedrosa)

Kênia Gabriela Mariano. 32 anos. Marianense, criada em Passagem. Presa por tráfico de drogas. Ex-detenta. Mãe de quatro filhos. Desempregada. Kênia recebeu a equipe de reportagem na sala de sua casa, na presença de sua filha Geovanna (8), que permaneceu brincando no local durante toda entrevista.

A ex-detenta conta que foi humilhada, assistiu crueldades, foi perseguida, privada de ver a família, a deixaram sem luz e sem água. Viveu de comida azeda e em celas sujas, assim como as outras internas da penitenciária de Mariana. Os relatos de Kênia refletem a realidade das unidades carcerárias brasileiras pelas quais passou.


Durante seus três anos de detenção, Kênia passou por três penitenciárias: Presídio de Ouro Preto, misto; Presídio Do Horto, feminino e por último, o Presídio De Mariana, misto. Retratou a unidade de Mariana como a pior delas. “Aqui pra mim foi péssimo, essa cadeia daqui foi péssima. O que posso passar pra você na época em que eu estive lá, é que a pior cadeia que eu passei foi a de Mariana.” Fazendo uma comparação entre as três unidades, a ex- interna destaca o Presídio do Horto, que oferecia atividades como aulas e celebrações de datas comemorativas dentro do presídio. “Não nos tratavam como presos, mas como internos, como gente. Eles ensinavam a gente a lidar com todo tipo de pessoa”.


No período que Kênia esteve detida em Mariana, a administração era responsabilidade do Núcleo de Gestão Prisional da Polícia Civil e contava com cinco agentes penitenciários. Após ter sua liberdade concedida, a ex-detenta continuou frequentando a penitenciária, pois realizava visitas a seu marido, José Carlos, preso acusado de ser cúmplice de um assalto e de porte de munição. Durante esse tempo ela acompanhou mais duas administrações, uma delas em responsabilidade da SUAPI - Subsecretaria de Administração Prisional. Mais tarde, seu marido foi transferido para Ribeirão das Neves, porém, segundo Kênia seu esposo não era problemático dentro da cadeia e nunca teria dado motivo pra ter sido transferido.

Novamente, Kênia se deparou com a crueldade dos agentes e do diretor em Ribeirão das Neves, mesmo que agora em condição de visitante. “[O diretor] Trazia agentes de fora para dar revista nas mulheres. Além disso, as revistas eram diferentes, a minha era totalmente diferente. Eu acho isso um absurdo. Deitar você em cima de uma maca e colocar uma lanterna nas partes do corpo. Isso para mim é uma humilhação.” O tratamento diferente ocorria principalmente pelo fato de Kênia ser uma ex-detenta.


O marido de Kênia faleceu por negligencia médica durante seu tempo de reclusão, o que a motivou a mover um processo contra o governo, que até o momento continua tramitando. Ela relata que durante o período de acompanhamento de José Carlos, batalhou para que seu esposo tivesse um tratamento humanizado. “Meu marido tinha muita bronquite, então às vezes ele passava mal com febre e garganta inflamada. Ficava dias e dias pedindo para ser levado ao médico e ninguém levava.” O tratamento desumano que seu marido recebeu é algo que ainda hoje a incomoda, já que não se sente confortável para contar de fato quais foram as causas do óbito de José Carlos. Kênia encontrou uma forma de expressar sua dor, a eternizou em uma tatuagem, nas costas, que diz “Colecionadora de Lágrimas”.


Após cumprir a pena, Kênia se tornou um ponto de apoio das famílias dos presos. Para ela, as famílias temem dizer o que sofrem por receio dos internos sofrerem retaliação. Além disso, passou a ser como uma mãe para todos os detentos de Mariana. Kênia alega entender os olhares, os códigos e as escritas dos presos. “As detentas ainda hoje têm muito medo de falar. Como convivi bastante tempo com todas, bastava um olhar, um desenho na mão, um sinal ou uma palavra para eu saber o que elas queriam me dizer. Os agentes começaram a me perceber como ameaça e barravam minhas visitas, alegando que eu não tinha parentes dentro do presídio”. Por esse motivo as visitas de Kênia no presídio de Mariana passaram a ser escassas, acontecendo somente em questões complexas e pontuais, como por exemplo a última rebelião que ocorreu no início de 2017. Ela se mantém próxima dos familiares dos detentos por redes sociais.


Após receber sua liberdade em 2011, Kênia relata que seu psicológico estava totalmente abalado e que não recebeu nenhum tipo de apoio de órgãos públicos responsáveis pela saúde mental. Além disso, sua própria família a desamparou e sempre a criticou, com exceção de sua mãe. “ Não tive nenhum apoio psicológico, só da minha mãe. As pessoas que ouviram falar que eu já tinha sido presa se afastaram.” No mercado de trabalho as dificuldades e preconceito também são constantes. “Para serviço é bem complicado até hoje. Eu podia até estar na frente, mas quando eles perguntavam se eu era ex-presidiária, eles passavam outra pessoa em minha frente sem dar explicações.”


Os problemas psicológicos de Kênia surgiram após a transferência para o Horto em Belo Horizonte. Com a baixa frequência de visitas da mãe e dos filhos, Kênia se via vulnerável e sozinha. Ela alega que os problemas persistem até hoje. “Meu psicológico já saiu de lá todo abalado e continua até hoje”. Segundos estudos realizados pela escola de enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, no contexto de reclusão, os transtornos mentais são frequentes, especialmente a depressão, com fatores de risco associados ao histórico familiar, adversidade na infância, aspectos da personalidade e isolamento social.


Kênia, como milhares de brasileiros, ainda hoje continua na luta em busca por condições mais dignas de vida. Deixar o crime não é só questão de força de vontade, há marcas que persistem, e, para se tornarem cidadãos comuns, ex-detentos precisam provar algo que não está no papel - a vontade de refazer suas vidas honestamente. “ A palavra de um ex-presidiário não vale nada”, lamenta Kênia.



2016 - 2017

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