Sem condições de arcarem com aluguéis, famílias ocupam terrenos inativos em Mariana
Na imagem, placa de uma das ruas do bairro Novo Horizonte (Foto: Luan Carlos)

Bairros em territórios ocupados, não reconhecidos como legítimos pela prefeitura, vem surgindo em Mariana nos últimos anos. Os dois maiores do gênero são o Santa Clara, que surgiu há aproximadamente 14 anos, e o Novo Horizonte, há apenas 6. Os dois bairros são, respectivamente, extensões dos já tradicionais e conhecidos Cabanas e Morada do Sol, e abrigam ao todo mais de mil e trezentas famílias, em sua maioria de baixa renda. Em meados de 2013 começou um intenso processo de expansão, a partir do qual pessoas que enfrentam dificuldades financeiras começaram a ocupar terrenos inutilizados pela prefeitura e terceiros. Esse movimento migratório surgiu, principalmente, dentro da própria cidade e, em pequena parte, de pessoas vindas das cidades e vilarejos vizinhos em direção às áreas inutilizadas.
Letícia Maia (22), graduanda em Serviços Sociais pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e autora de um Trabalho de Conclusão de Curso sobre o tema, frisa que essas pessoas optam pela ocupação dos terrenos para fugirem dos altos índices de valores de aluguéis. A possibilidade de começar uma vida nova, longe das áreas supervalorizadas, associada com as dificuldades financeiras, o desemprego e o sonho da aquisição da casa própria motivam esse processo.
Nathália Rocha (24) e Sandro Flores (41) presidem, respectivamente, as associações dos moradores dos bairros Novo Horizonte e Santa Clara. Ambos os bairros estão sendo consolidados em territórios particulares, pertencentes em grande parte a prefeitura e a terceiros. Isso gerou uma disputa entre município, ocupantes e proprietários.
O município, ao considerar que as casas foram construídas em terreno irregular, deixa de fornecer apoio básico e estrutural, como rede de esgoto, correios, água e luz a mais de mil e trezentas famílias de baixa renda estabelecidas nas duas áreas. De acordo com fontes, os moradores também são, muitas vezes, privados de serviços particulares, como entrega de materiais de construção, de compras alimentícias e outras necessidades básicas. As pessoas que são vistas realizando esses tipos de serviços estão sujeitas a multas e repreensões por parte da fiscalização da Prefeitura.
De acordo com alguns moradores, parte das ocupações foram incentivadas por candidatos a cargos públicos na tentativa de conquistarem apoio político em eleições. Segundo os moradores, as pessoas poderiam ocupar determinados terrenos e depois que os candidatos fossem eleitos iniciaria-se o processo de regularização, o que nunca ocorreu.
Atualmente, as ocupações acontecem durante a madrugada ou quando há festividades pela cidade. Nesses dias, a fiscalização fica concentrada nos locais dos eventos, longe dos bairros de ocupação. Em esforço conjunto, os moradores constroem pequenas moradias, com no mínimo um cômodo e banheiro. Toda a construção deve ser feita de uma só vez e, por isso, os construtores passam horas trabalhando nas obras. Quando acabadas, são alocadas famílias com ao menos uma mulher e uma criança. Posteriormente, as construções têm prosseguimento pelos próprios moradores, que fazem economias na intenção de, aos poucos, melhorarem suas casas.
Esses moradores também se encarregam de serviços que seriam de responsabilidade dos órgãos públicos: abrem e nomeiam ruas com as proporções previstas em normas, cavam e criam redes de esgoto devidamente tampadas, visando melhores condições de saúde pública e a segurança das crianças que brincam nas ruas. Projetam melhorias para o futuro e buscam solução legal para o impasse jurídico em que se encontram.
Moradias populares

Além dos alugueis sociais, moradias populares também foram construídas nas proximidades de ambos os bairros. Várias famílias no momento passam por um processo de seleção, para que se decida, baseado em critérios socioeconômicos, quem residirá nos domicílios.
Porém, o que chama atenção, segundo os líderes de bairro Natália e Sandro, é que prédios de moradias populares foram construídos pela própria prefeitura nos terrenos denominados particulares, onde localizam-se as ocupações. Essas construções, terminadas há cerca de um ano, estão sem residentes, apesar de já estarem em condições de abrigar famílias. Estão agora abandonadas, sem luz ou água regularizadas e sujeitas a depredação e vandalismo.
Ao ser questionado sobre as ocupações, o prefeito eleito Duarte Júnior, mais conhecido como Du, argumentou que fazer novos loteamentos é mais barato que regularizar as moradias já existentes em áreas ocupadas. Os proprietários pedem valores mais altos do que os de mercado e isso requer ação judicial para ser regularizado. A prefeitura tentou, desde 2004, a negociação com os gestores da Companhia Minas da Passagem, principais proprietários dessas terras. Emitindo, inclusive, vários decretos de desapropriação das áreas ocupadas para que fosse realizada uma provável regularização dos terrenos, porém ambas as partes não chegaram a um acordo.
Nas imagens, as áreas demarcadas para desapropriação de terras nos bairros Novo Horizonte e Santa Clara, para que as residências pudessem ser regularizadas. (Imagens: arquivo da Prefeitura de Mariana)



Com relação aos conjuntos de moradias construídos em áreas particulares, o prefeito confirmou que alguns dos prédios realmente foram erguidos em terreno alheio pela antiga gestão. E por também serem construções irregulares, tanto os prédios quanto os moradores do bairro não podem se beneficiar com os serviços de coleta de lixo, água, saneamento básico e luz elétrica.
Sem previsão para residirem nos prédios de moradias construídos pela prefeitura e sem o apoio do município para a estruturação dos bairros, os próprios moradores trabalham em forma de comunidade.
Na imagem, parte da tubulação da rede de esgoto instalada pelos próprios moradores e uma das ruas danificadas pela água da chuva. (Foto: Samuel Senra)

Por diversas vezes os moradores tiveram suas obras impedidas e os materiais de construção recolhidos pela prefeitura, além da proibição da entrada de caminhões de abastecimento de água. O abastecimento é feito, na maioria das vezes, pela água da chuva, que é armazenada em diversas caixas d’água instaladas pelos próprios moradores em suas residências. É comum a ocorrência de mais de um reservatório por casa.
“Por parte da prefeitura luz e água nunca chegaram aqui”, alega Natália. “Se a prefeitura não pode fazer, por que os moradores não podem?”, ela completa. Os trabalhos nos bairros são necessários para que haja melhoria da qualidade de vida dos que ali habitam. Portanto, eles têm tomado as iniciativas das obras e reformas.
Na imagem, as casas habitadas e acima delas um prédio da prefeitura de moradias populares inacabado. (Foto: Samuel Senra)

O que prejudica a imagem dos bairros
“O problema é que o pessoal de mau caráter vem, entra e amanhã ou depois vende. Não é caso de necessidade e isso acaba prejudicando o nome do movimento. Infelizmente é o que está acontecendo.”, disse um dos moradores que não quis ser identificado. Dessa forma, as famílias que não têm reais condições de arcarem com aluguéis são injustamente marginalizadas. Segundo Natália, ao contrário do que muitos alegam, as ocupações são formadas em grande parte por pessoas honestas e trabalhadoras que, devido às dificuldades econômicas e financeiras enfrentadas, apenas buscam um lugar para viverem.
Os moradores, devido às condições irregulares que enfrentam, vivem em constante risco de despejo. Muitos deles já experimentaram essa ameaça. A prefeitura, inclusive, criou um programa de disque-denúncia para que moradores próximos às áreas ocupadas denunciem futuras ocupações. Sandro nos conta um episódio que viveu há alguns anos. Os fiscais chegaram no bairro pela manhã, aproveitando o horário em que todos estavam no trabalho, para que assim as desapropriações pudessem se concretizar. A justificativa para a ação, segundo o até então Prefeito Celso Cota, era a de melhorias no local. Depois de receber várias ligações dos moradores, Sandro e alguns vizinhos foram para suas casas na tentativa de protegê-las. "Não vai quebrar nada aqui não", ele disse. Mas uma das casas acabou sendo danificada. Quando questionado sobre como eles procedem diante dessas ameaças Sandro nos conta: “Você tem que chegar e peitar, entrar na frente, se você não ficar lá eles metem a picareta mesmo”.
Um dos moradores disse ter sido alertado por uma juíza que o movimento, de certa forma, é legítimo, e que o nome correto dessas ações é "ocupação", e não "invasão". Ele explica que nas áreas que foram ocupadas existiam apenas terras sem nenhuma função social. Para o terreno de um dos bairros, por exemplo, existe um projeto que daria origem a um novo campo de futebol. Para outro, um projeto de urbanização e loteamento da década de 80, que nunca saiu do papel. Sem função, os terrenos ficam a mercê de especulação imobiliária. É importante ressaltar que a palavra "invasão" só pode ser utilizada quando se trata de ocupações em edifícios físicos já construídos ou em solos com algum tipo de produtividade.
Essas pessoas são frequentemente taxadas por outros habitantes da cidade e pelo próprio poder público como perigosas: traficantes e usuários de drogas, ladrões, e bandidos de forma geral, pessoas que contribuem negativamente para a cidade. Mas os moradores reiteram: “Aqui só tem pessoas trabalhadoras. Ninguém mexe com ninguém e ninguém prejudica ninguém. É bem difícil, mas a gente só está aqui porque não tem outro jeito”, diz Vera Sônia da Cruz (39), uma das moradoras do Novo Horizonte.
Na imagem, a terra sendo aproveitada para o plantio de flores e alimentos. (Foto: Samuel Senra)

(Imagens retiradas do Google Earth)


(Dados cedidos pelas associações dos bairros Santa Clara e Novo Horizonte)
Processo judicial em curso
Os moradores, que enfrentam processo na justiça para serem desapropriados, procuram solução legal para o impasse. Eles buscam, de alguma forma, o apoio da prefeitura, seja para financiamento dos terrenos ocupados ou para as obras públicas dos bairros. Entretanto, a fim de não incentivarem novas ocupações, a prefeitura diz por meio de seus representantes que é um equívoco e uma ilusão pensar que todos os bairros de ocupação que surgirem serão regularizados.
O programa social "Mãos Solidárias", que conta com o apoio de todas as secretarias municipais, atua em Mariana desde janeiro de 2016 e visa atender as demandas por serviços e bens públicos dos moradores dos bairros e distritos da cidade. O projeto fornece materiais de construção e mão de obra para que os moradores realizem reparos em suas residências. Porém, a iniciativa não atende aos bairros ocupados, que são justamente os que mais necessitam.
Um dos recursos jurídicos utilizados pelos moradores desses bairros para reivindicarem a legitimidade das terras é a Lei do Usucapião. Após determinado período residindo em um imóvel, os moradores podem solicitar o direito de aquisição do espaço habitado. Porém, quando há um processo judicial envolvendo esse imóvel, o recurso é inviabilizado. É o caso enfrentado por muitos dos moradores desses bairros.
O processo corre na justiça sem previsão de acordos que favoreçam os moradores. E enquanto não há um desfecho legal no impasse jurídico, as mais de mil e trezentas famílias abrigadas em ambos os bairros continuam sofrendo com o descaso e a falta de apoio social por parte do poder público.