Moradores de Bento Rodrigues ainda vivem o drama da condição provisória e lutam por direitos. Projeto urbanístico de reassentamento é discutido entre empresa e atingidos
Todo lugar possui uma história própria, histórias cruzadas e uma cronologia. Mas o que acontece quando elas são interrompidas? O que acontece quando uma barragem de rejeitos as destrói? Há um futuro para elas? Os moradores de Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, acreditam que sim, mas só haverá reparação adequada através de muita luta e pressão popular para enfrentar a intransigência das empresas. O vilarejo que hoje é formado por lama e ruínas, foi cenário do maior crime socioambiental do Brasil de responsabilidade da empresa Samarco (Vale - BHP).
A expectativa é de que o projeto de reassentamento e reconstrução de Bento seja concretizado até março de 2019. Mas o que são esses 4 anos de espera? As famílias já têm criado resistência popular firme e permanente para restabelecer uma vida digna. O novo Bento deve ter, para a comunidade, as aparências do antigo. Eles não querem apenas uma casa nova, mas um lar planejado com base nas suas identidades e recuperação de suas relações afetivas, mesmo que muitos laços tenham sido reforçados desde que a barragem estourou.
Para alguns dos moradores que conversamos, a luta da comunidade é mais importante que qualquer atraso na concretização do projeto. A demora pode acontecer devido consideração da fundação sobre as expectativas dos atingidos. Isso porque, antes de tudo, eles têm direito de solicitar mudanças que considerarem necessárias nos desenhos urbanísticos. “Tudo que a gente consegue tem que ser perante muita burocracia. Existe muita demanda que poderia ser resolvida sem essa demora. Isso é cansativo para a gente”, apontou Milton Sena, atingido. Para o morador José do Nascimento, existe uma demora desnecessária de retorno das pautas que os moradores enviam. “Não queremos mais correr atrás de nada porque já corremos muito da lama. Queremos ser tratados com mais carinho. Ninguém pediu para ser atingido”, desabafa.
“Eu tenho esperança”
“Que Bento novo seja um lugar bom para recomeçar!” (Weberson Arlindo).
“To com muita vontade que construa logo, muita ansiedade para pelo menos dar início” (Marli de Fátima).
“Quero a mesma rua, mesmo vizinho e a mesma casa de antes” (Sandra Quintão).
“Igual a gente sabe que não tem como, mas pelo menos o mais próximo possível a gente quer” (Mônica dos Santos).
“Quero cuidar das minhas terras, criando e plantando. Eu me desliguei da Samarco para cuidar disso e não quero receber em indenização, quero em terra. Mas não tive resposta ainda” (Marcos Muniz).
Moradores em Bento Rodrigues na noite de Carnaval (Arquivo pessoal: Mônica dos Santos)

“Nós temos um grupo: os loucos de Bento. Arrumamos uma ponte nossa um dia e de lá para cá vamos de vez em quando para nos reunir e dormir por lá mesmo. Relembrar” (Marcos Muniz)
Comunidade rural, Bento era um lugar onde todos se conheciam. A partir do deslocamento dos atingidos para moradias no centro de Mariana, a relação de vizinhança e de companheirismo no geral foi enfraquecida. “Hoje nos encontramos só de vez em quando e nos vemos só nas reuniões”, constatou Sandra Quintão, que tinha um bar em Bento.
Bento Rodrigues ainda é um lugar muito vivo e essa riqueza se traduz no desejo da comunidade de lar e justiça. O interesse em causas legais a respeito do crime tornou-se assunto forte nas conversas dentre muitos moradores.
“Eu lembro como se fosse ontem quando eu me mudei para lá, ainda moleque, com meus pais. Tava doido para conhecer minha casa nova. Hoje eu quero algo novo de novo”, disse Marcos Muniz sobre suas terras. Para os moradores, Bento, que foi um dos primeiros vilarejos de Mariana, deve continuar vivo e ser, além de tudo, respeitado como patrimônio.
Projeto e luta
Para o processo de reconstrução e reassentamento de Bento Rodrigues, foi necessário o desenvolvimento de dois projetos urbanísticos. O primeiro não foi bem aceito pela comunidade. Em contrapartida, o segundo foi aprovado por 80% das famílias em uma Assembleia Geral realizada em janeiro de 2017. Isso se deu pelo fato dos moradores não ficarem satisfeitos com o desenho urbanístico apresentado inicialmente, devido a não consideração de características originais do vilarejo, tidas como importantes para os atingidos.
Segundo assessoria da Fundação Renova, o primeiro projeto urbanístico apresentado contou com um processo de Levantamento de Expectativa correspondente aos interesses dos atingidos. A assessoria também disse que há garantia de direito dos moradores de Bento Rodrigues sobre as decisões tomadas de forma transparente e legítima.
A Fundação Renova, presidida pelo biólogo e administrador de empresas Roberto Waack, foi elaborada em acordo entre empresa e governos federal e estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo. Fundação independente, suas atividades foram iniciadas em agosto de 2016. Tem como função comandar os programas de recuperação e reconstrução das áreas atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão. Hoje, a assessoria da fundação já responde por grande parte das demandas destinadas à assessoria da Samarco, porém, não pode assumir as responsabilidades da empresa.
Segundo Genival Sednanr, morador de Bento, isso não aconteceu inicialmente: “eles fizeram um levantamento, mas compraram um projeto pronto sem levar em conta nenhuma expectativa. Mostraram ele pra gente, mas não tinha nada a ver com o Bento original. Todos da comunidade se levantaram contra. Nós falamos que o projeto tem que ser feito em conjunto”.
Genival disse que, mesmo depois de consideradas as exigências dos moradores, as leis urbanísticas não permitem a mesma vizinhança por diferença do tamanho dos terrenos. “Eu morava perto do bar do Barbosa e da lanchonete da Jilma, mas agora Jilma vai ter que ficar um pouco mais distante”, lamenta. Segundo a Fundação, as famílias terão o tamanho do terreno que possuíam. Aquelas que tinham lotes menores do que o exigido legalmente, receberão terrenos de 250 m². Além disso, a largura das ruas e lotes terá um padrão de no mínimo 10m e o tamanho dos quarteirões, inferior a 200m.
Marcos Muniz relatou o problema do projeto inicial da fundação sobre a desconsideração das relações de vizinhança na comunidade. Quando a primeira proposta foi apresentada, ele manifestou o desejo em continuar morando na rua Raimundo Muniz, que foi nomeada em homenagem ao seu avô.
Mônica dos Santos e José do Nascimento, membros da comissão dos atingidos, citaram os problemas relacionados à igreja. No antigo Bento a igreja não tinha uma escadaria e não possuía um campo de futebol na frente. “Nós não gostamos. Eu acho que igreja não combina com campo. Na verdade, esse primeiro projeto não combina nada com que a gente tinha”, disse Mônica.
As comissões dos atingidos surgiram a partir da insatisfação das famílias nas regiões do Brasil onde obras referentes à mineração foram construídas. Bento Rodrigues e outras regiões afetadas pela barragem de Fundão possuem seus grupos “porta-voz”. Eles mantém diálogo direto com a fundação e os demais órgãos que participam do processo.
Devido a muitas queixas dos moradores junto a Comissão dos Atingidos, foi necessário o desenvolvimento de um novo projeto entre 2016 e 2017. Para isso, grupos de trabalho organizados pela Samarco contaram com a comissão dos atingidos e a assessoria técnica para discutir novas propostas de planejamento urbano que cumprisse com a demanda dos moradores.
Um conselho consultivo foi formado e oficinas foram oferecidas para conhecer a proposta urbanística preliminar com a presença de 67% do total das famílias convidadas a contribuir. O projeto de construção apresentado foi discutido previamente entre comissão e assessoria técnica. Essa assessoria possui papel por trás das reuniões entre fundação e moradores de acompanhar e garantir a eles participação. Os encontros funcionam em Grupos de Base entre a comissão dos atingidos e a assessoria para discutir, por exemplo, assuntos referentes às manifestações dos moradores e a recuperação de áreas degradadas, além de dar apoio psicológico.


A assessoria técnica dos atingidos é uma espécie de grupo de confiança dos moradores para apoiar a comunidade na tomada de decisões referentes a deliberações feitas pela fundação. Assim como a Renova, a Samarco custeia essa assessoria, mas não gerencia suas ações. Cáritas Brasileira é a entidade que coordena o processo da assessoria. Garante promoção e atuação social, trabalhando na defesa dos direitos humanos. Essas atuações técnicas tiveram início em outubro de 2016, mas desde dezembro de 2015 a Cáritas oferece solidariedade aos atingidos pelo rompimento da barragem. Foi lançada na época a ação Gesto Solidário em recursos arrecadados para ajuda comunitária, seguindo o lema “direitos violados, vidas destruídas”.
Bento Rodrigues original

Desenho de projeto em lavoura

Um cadastro foi elaborado com base em um levantamento de dados socioeconômicos e culturais. As relações de vizinhança serão consideradas, bem como o uso do espaço que cada família fazia, referente a quantidade de cômodos, por exemplo. Além de considerar a área de abrangência socioeconômica e a expectativa da população, o plano levanta e avalia os danos da comunidade.
Todavia, na prática, o cadastro não se mostrou efetivo. Segundo jornal A Sirene, para os atingidos, está longe de ser. Em reunião no dia 13 de fevereiro entre comissão, assessoria, Ministério Público e representantes da Samarco, foi pedida uma revisão do cadastro feita em conjunto. O cadastro foi elaborado pela Samarco e Synergia e além de muito burocrático, também não contempla todas as exigências. O tempo necessário para respondê-lo é muito longo e exaustivo.
“Um povo organizado consegue seus direitos”, grita Mara Quintão, moradora de Bento, em uma das reuniões da fundação com os atingidos sobre o cadastro e estimula a comunidade a exigir suas necessidades.
Tombamento e memória
Um tombamento traduz o reconhecimento do valor histórico e cultural de um bem. O desastre segue vivo na memória dos atingidos, mas isso não basta. Eles querem que o vilarejo continue vivo fisicamente também. De acordo Telmo Padilha, presidente da Defesa Civil de Patrimônio Histórico (Defender), a construção do Dique S4 e o alagamento de parte de Bento, consequente da construção, servem para esconder o cenário de um crime ambiental e apagar as referências que contribuem para o esquecimento do desastre. “Um remendo cala a boca”, alega.
O Dique S4 corresponde à estrutura que integra um sistema emergencial de retenção de sedimentos. Conforme assessoria da Samarco, a construção do dique é emergencial e serve prioritariamente para conter os rejeitos que permaneceram em Bento depois do rompimento. Os moradores reconhecem a importância de conter esses rejeitos, mas acreditam que outras soluções de engenharia podem ser usadas sem prejuízo à comunidade.
“A Samarco “passou por cima” do decreto da Compat e do desejo dos atingidos em preservar os bens culturais de Bento." (Lucimar Muniz)
O processo de tombamento de núcleos urbanos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo foi aberto em maio de 2016 a fim de valorizar, resgatar e difundir o patrimônio cultural das comunidades atingidas. Esse procedimento dependia da Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto, porém encontra-se parado há cerca de 9 meses, como aponta Lucimar Muniz, museóloga e herdeira de terrenos em Bento Rodrigues. Tentamos entrar em contato com a prefeitura da cidade, mas não tivemos resposta.
Lucimar e outros atingidos alegam que o tombamento fazia parte do processo que impedia a construção do Dique S4. O Dique encontra-se hoje em um dos terrenos dela e a obra foi concluída no dia 27 de janeiro de 2017 sem a aprovação dos moradores. A estrutura resulta no alagamento não só dos terrenos de Lucimar, mas de 1/3 de Bento.
Capela de Santo Antônio em processo de tombamento.(Foto: Stênio Lima/A Sirene)

Foi realizado o tombamento da capela de Santo Antônio (Paracatu) e da Igreja de Nossa Senhora das Mercês (Bento) entre maio e dezembro de 2016. Entretanto, essa etapa faz parte de um grande processo, já que corresponde a apenas dois perímetros. Os outros, localizados no entorno, também devem ser considerados como patrimônio, mas estão em processo parado de tombamento. Segundo deliberação do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de Mariana (Compat), dentre os tombamentos estão: a Igreja de Nossa Senhora das Mercês, São Bento e Santo Antônio, sítios arqueológicos, muros de pedras do período colonial, trecho da Estrada Real e edificações conhecidas, como o Bar da Sandra.
Segundo Lucimar, a Samarco “passou por cima” do decreto da Compat e do desejo dos atingidos em preservar os bens culturais de Bento. O projeto do Dique S4 foi aprovado em setembro pela Delegacia Regional do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e o governo estadual de Minas Gerais.
Além disso, “o S4 faz parte do processo para a construção da barragem de Mirandinha dentro de Bento Rodrigues”, alega Lucimar. Para ela, deveriam ter construído o dique aos pés das barragens, não dentro de Bento. Contudo, a empresa descarta a possibilidade da construção de Mirandinha.
Em relação a isso, Lucimar defende: “eles fragmentam processos e conseguem ir ganhando essa propriedade aos poucos”.
“A pergunta que fazem (a empresa) aos moradores é se aceitam serem indenizados pelo alagamento de suas terras. Assim, podem escolher entre ficar com as terras do antigo ou ficar só com as do Bento novo. A Samarco contesta que os moradores terão responsabilidade pela manutenção, como capinar, etc e as famílias acabam desistindo de ficarem com as terras”.
A construção de uma barragem seria apenas parte desse processo de esquecimento. Para os atingidos, não basta unicamente reconstruir um Bento novo, mas preservar o antigo. Bento Rodrigues deve ser mantido como memória de um crime ambiental, defensor da identidade e origens de uma comunidade e reconhecido como patrimônio de Mariana, cidade histórica do Brasil.
Paracatu de Baixo
A tragédia anunciada não afetou somente os moradores de Bento Rodrigues. Paracatu de Baixo, por exemplo, também foi destruída pela lama e, ao contrário de Bento Rodrigues, os moradores não possuem um terreno comprado para a reconstrução. O terreno Lucila, localizado no distrito de Monsenhor Horta, foi escolhido, mas ainda não existem respostas definitivas sobre o local. O projeto anda a passos lentos e não tem sequer uma previsão de conclusão. Há um diálogo entre a Renova e a comissão dos atingidos, mas até agora nada foi concretizado. Pouco ainda aparece como perspectiva para o futuro das cidades atingidas.
Angélica Peixoto, moradora de Paracatu de Baixo, lamenta: “a gente quer mesmo que reconstrua logo, estamos com o processo demorado. Só pensamos na construção. Até pensávamos em outras coisas como nossos direitos de exigir, mas 1 ano e meio é muito pra nós”. Para Angélica, a construção de Paracatu de Baixo está demorando. Sua prioridade no momento é ter um lugar para chamar de lar.