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Aqui dentro, saudade do “Lá fora”

Jean Lourenço, Karine Bibiano e Wallace Neto

As dificuldades de adaptação dos moradores de Bento Rodrigues e Paracatu em Mariana


Foi há um ano e cinco meses que aconteceu a maior tragédia socioambiental do país. Parece muito tempo, mas para os atingidos as memórias persistem. Moradores de Bento Rodrigues e Paracatu ainda sofrem a perda de tudo que tinham. Desde a casa, os móveis, até criações, plantações, familiares e amigos queridos.


A mudança de cidade também afetou os atingidos. Como, por exemplo, Marinalva e Dona Maria, agricultoras, que hoje vivem outra realidade. O trabalho com a lenha foi substituído pelas tarefas domésticas, o quintal com as hortas por uma área de lavar roupa e as criações já não existem. Tudo mudou.


De crianças a idosos, existe uma dificuldade na adaptação à cidade. A nova moradia, que não atendeu as expectativas da maioria, trouxe para alguns o desconforto da falta de seu espaço próprio. Muitos que procuravam apoio depararam-se com certas resistências, tanto psicológicas, quanto sociais. “Em primeiro momento ocorreu uma sensibilização muito grande de todo o país com relação a esses moradores, mas, depois de um tempo, conflitos começaram a ser gerados”, afirma Lucimar Muniz, atingida, restauradora e museóloga envolvida com a causa do dique S4.


Lucimar, que acompanhou de perto o primeiro contato dos atingidos com as novas moradias, argumenta que os que tinham mais de 30 anos com a vivência rural foram impostos a se acostumarem com uma nova vida. Quando começarem a se acostumar com a rotina, os vizinhos, os alimentos, o barulho, o trânsito, a casa, etc., virá uma novamente uma ruptura e uma nova mudança.


“Muitas vezes já falei com eles sobre planejamento futuro e ouvi como resposta: para quê sonhar e me esforçar a construir se em minutos vai tudo embora? A outra vila pode até ser igual, mas não vai ser a mesma coisa. A insegurança vai ser um fantasma sempre por perto”, palavras de Lucimar.


“Antes sempre falava: eu quero minha casa e não quero mais nada. Pois agora falo: eu quero cada centavo que é meu de direito. Porque perdi coisas em Bento que jamais terei de volta. Desde pessoas que se foram a fotos dos meus filhos pequenos”, manifesta Marinalva dos Santos Salgado, 44 anos, mãe, avó e moradora de Bento Rodrigues.


Para contar melhor sobre a história e experiência dessas pessoas, conversamos com duas famílias que narraram essa nova vida em Mariana.


Família de Marinalva

Mesmo com todos os problemas de adaptação, nem todos os membros da família Salgado estão infelizes com a nova vida em Mariana. João Paulo, 5 anos, neto de Marinalva, diz gostar da escolinha e de seus novos amigos. Contudo, perdeu a liberdade de poder brincar no campo. Ele e seus primos passam mais tempo em casa, sendo que esse nunca foi o hábito. Brincadeiras em grupo ao ar livre não fazem mais parte de seu cotidiano. Hoje, o caçula da família passa mais tempo em frente às telas do computador e da televisão. A avó se preocupa com as consequências que o peso da mudança de cotidiano pode causar, mas admite que o neto não reclama justamente por não entender muito bem o que aconteceu.


Marinalva e João Paulo. (Foto: Wallace Neto)


Para Marinalva, o processo de adaptação tem sido difícil. Ela relata que o maior desconforto é ver a filha mais nova, Eliziane Fernanda (16), apresentar um comportamento diferente do habitual e necessitar de acompanhamento psiquiátrico, já que agora sente a necessidade de tomar remédios para dormir. A mãe relata que a filha, além de ter perdido muito peso, passou a ser uma pessoa reclusa, ficando apenas em casa e recusando sair com os amigos.


A jovem, estudante do segundo ano do ensino médio, diz que se sente bem recebida em sua escola, apesar de já ter passado por constrangimentos ao ser hostilizada por outros adolescentes com termos ofensivos, como “marilama” e “pé de lama”.


De acordo com a professora de história da Escola Municipal de Bento Rodrigues, Silvany Diniz Ferreira, 41 anos, esse tipo de hostilização decorre de informações mal processadas ou desconhecimentos acerca de algum assunto. Para a educadora, a convivência entre crianças e adolescentes é muito controversa. No caso de Bento Rodrigues, no final de 2015 e durante todo o ano de 2016, quando a escola coabitou o espaço da Escola D. Luciano Pedro Mendes de Almeida, no Alto do Rosário, houve casos de entendimento entre eles e também casos de provocações e competições.


A maioria dos profissionais da escola reconhece que o processo de adaptação está difícil tanto para os alunos, quanto para as equipes envolvidas. Para deixar o ambiente escolar mais leve e agradável, desenvolvem rodas de conversas e procuram fazer atividades lúdicas, projetos de resgate da memória e identidade para que possam vivenciar experiências em grupo. “Não é fácil participar desse processo como profissional, pois não tivemos nenhum tipo de preparação para lidar com esses adolescentes. O que fizemos foi de acordo com a nossa intuição, com as nossas vivências e com constantes leituras acerca de traumas”, ressalta Silvany.


As famílias dos atingidos e a direção da escola de Bento Rodrigues preferiram que os alunos do colégio permanecessem juntos, para facilitar a adaptação na cidade. O colégio será realocado para um espaço onde funcionará sozinho.


Eliziane está prestes a concluir o ensino médio, não tem vontade de continuar morando na cidade e deseja se mudar para o Novo Bento.


A mãe, Marinalva, antes conhecida pela sua plantação de pimenta biquinho, tinha uma vida agitada, mas seu cotidiano ligado ao cultivo e comércio se estagnou. Agora a dona de casa sai apenas quando precisa. Ela afirma sentir falta de sua rotina no campo.


Com a separação de famílias após a mudança repentina, muitas delas perderam contato. Com a de Marinalva não foi diferente. Ela afirma que desde o dia da tragédia não vê alguns parentes e que sente falta da aproximação entre eles. “Lá era todo mundo perto, era só família. Tínhamos contato com todo mundo. Já aqui, é cada um para um lado”.


Marinalva diz ter poucos momento de lazer, pois seus vizinhos não permitem que a vida na cidade seja prazerosa. Ela conta que quando tentou realizar um churrasco em familia, alguns vizinhos se incomodaram com o evento e comentaram sobre o assunto de maneira desagradável. Falas como: “A Samarco está bancando os atingidos e nos deixando de lado”. E faixas com os escritos “Fica Samarco” e “Somos todos atingidos” foram postas em frente à sua casa. “Os moradores de Mariana começaram a achar que a Samarco estava bancando tudo. Dando dinheiro para esse tipo de lazer enquanto eles ficavam excluídos”, alega Marinalva que anseia voltar para Bento Rodrigues e reconstruir sua vida.


Família de Dona Maria

A rotina de se levantar todos os dias às cinco da manhã, fazer café, caçar no mato, almoçar e ir para a terra, não existe mais. Hoje, Maria do Carmo, 55 anos e José Patrocínio, 87 anos, moradores de Paracatu, não ocupam nem a metade do tempo que tem. Suas saudades do campo refletem o contato de pessoas que passaram a vida inteira em um ambiente rural, com autonomia e renda própria. A mudança para Mariana trouxe a eles uma realidade contrária a antiga rotina. Assim como grande parte dos atingidos, o cotidiano passou por uma transformação brusca, ao deixarem para trás uma vida de proximidade com a natureza.

Lista de Dona Maria


“Na roça não tínhamos que comprar ovos, não tínhamos que comprar verdura e vivíamos da terra. Eu tinha 12 dúzias de ovos por semana, 58 cabeças de galinha, tinha 4 galos, 2 hortas e vendia frango para obter alguma renda. Tudo se foi com a lama”, afirma Dona Maria.


Durante o ano de 2016, Maria decidiu concluir o ensino médio e isso permitiu que ela se distraísse. Contudo, o trauma provocou um desgaste psicológico fazendo com que procurasse acompanhamento profissional. Hoje, necessita de medicamentos para poder dormir e sentir-se bem.


Maíra Almeida (24), psicóloga que trabalha no tratamento com os atingidos do desastre e acompanha o processo de adaptação deles em Mariana, nos relata que ela e sua equipe trabalham muito com a questão do sofrimento social, que é causado pelo contexto do que aconteceu. “A gente tem nos atendimentos, quadros de ansiedade, quadros depressivos e aumento do uso abusivo do consumo de álcool e drogas. Mas a gente entende que isso não é um fator isolado. É causado por um sofrimento que é social”.


Para ajudar com esses problemas, os psicólogos criaram atividades que recuperam a memória e a identidade desses moradores, buscando o pertencimento, os antigos hábitos e a retomada de algumas rotinas. Com isso, foi criado um espaço de convivência para que eles continuem praticando atividades que tinham costume, como o time de futsal feminino de Bento Rodrigues e o grupo de mulheres que confeccionam artesanato de Paracatu. Algumas outras atividades são feitas em conjunto com os moradores de Mariana. “A gente entende que essa integração com a cidade é muito importante. A partir do momento que eles se integram, acaba quebrando um pouco o preconceito. Eles se conhecem e entendem como é a realidade um do outro”.


Com relação ao tratamento com medicamentos, a profissional nos conta que acompanhou o casos como os de Dona Maria e Eliziane, e que ambas se tornaram dependentes de remédios para controlar a ansiedade e conseguir dormir melhor. Mas acredita que a maior parte dos atingidos não esteja na mesma situação. Na maioria dos casos a prioridade é de fazer acompanhamento por outros meios, como psicoterapia, grupos terapêuticos e espaços de escuta.


Dona Maria e seu companheiro, José. (Foto: Wallace Neto)


Maria, apesar de achar que voltará para Paracatu por causa da filha e da neta, tem tentado se adaptar ao novo estilo de vida e deseja conseguir comprar uma casa própria para ter seu espaço novamente. Já Seu José, não tem a vontade de viver na cidade. Ele se sente “preso”, por não realizar as tarefas que fazia antes do desastre.


O casal alega frequência nas reuniões com a Samarco e se dizem insatisfeitos com a empresa, que apesar de estarem arcando com o auxílio financeiro, não dá nenhum indício de resolver a questão das novas casas. A preocupação é somente com relação aos sitiantes.


Na concepção da professora Angélica Peixoto de Paracatu, essas pessoas sentem mais falta do "lá fora". E que esse "lá fora" faz muita falta para todos, independentemente da faixa etária. Aos mais velhos ela ressalta o questionamento: será que eu ainda vou ter tempo de vida para ver isso? Uma dúvida frequente daqueles que anseiam por justiça e em retornar para suas casas.



2016 - 2017

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